Do não querer ter animais de estimação




Não tenho animais de estimação. Os meus pais já tiveram, eu já tive. Há já vários anos que não somos donos nem de cães, nem gatos, nem queremos ser. Queremos apenas conviver com eles, sem posse, sem compromisso, sem trelas, seres em liberdade. É uma escolha de vida.

Apesar de já termos tido cães e gatos, sempre houve divisão de espaços. A casa é das pessoas, o quintal, a garagem e o anexo de arrumações é de uso partilhado. Para nós é assim que deve ser. Para nós. Há quem tenha outro entendimento e não criticamos quem, em ambiente citadino, escolha ter animal de companhia, mesmo que este fique confinado a um apartamento e a uma varanda. Ainda que possa viver num espaço pequeno, o animal acaba por receber comida e afecto dos donos, e isso é meritório. Por seu lado, os donos recebem também o carinho e a fidelidade animal.

Da mesma forma que não critico quem tenha cães em casas com pouco espaço, também não espero que os outros me considerem uma pessoa pouco virtuosa por não querer ter animais de estimação, nem gostar de ter a casa com cheiro a cão ou com pêlos espalhados por todo o lado.

Para mim, que sou do meio rural, os cães e gatos não foram feitos para viver num interior de uma casa, é da sua natureza andar ao ar livre, em contacto com o campo, a brincar, a apanhar sol ou a caçar, a fazerem cocó ou chichi quando quiserem, segundo o seu ritmo e não segundo os meus horários, os meus apetites.

Cá em casa não temos gatos. Mas, na verdade, há sempre gatos a adoptarem-nos. Não são nossos, são connosco. As gatas de vizinhos têm filhotes que acabam por gostar de vir para o nosso quintal. Começam a vir para o terreno, depois habituam-se a vir para o alpendre de acesso à cozinha. E começam a aprender os horários das refeições cá de casa, a saltar para o peitoril da janela da cozinha e a miar na hora certa. Nós damos os restos das refeições aos gatos, eles lambuzam-se e seguem a sua vida. Passeiam, dormem nas cadeiras de jardim, com almofadas, que temos no alpendre, trazem ossos ou espinhas ou outras porcarias para o tapete que está à porta da cozinha (nós limpamos), praticam artes circenses ao subirem às árvores, caçam bichezas, acompanham o meu pai nas suas tarefas no quintal. Entram dentro de casa se apanham alguma janela ou porta aberta, para rapidamente serem enxotados com veemência. Não os maltrato, mas faço-lhes ver que há fronteiras entre o espaço que é só nosso e aquele que é de uso comum. 

Não me apego demasiado a eles, eles não se apegam demasiado a mim. Vivo sem eles, eles vivem sem mim: cruzamos as nossas existências, sem dependência. Se deixarmos de lhes dar comida, sabemos que eles vivem à mesma porque são capazes de arranjar outras formas de se alimentar, como ir 'miar comida' à porta dos verdadeiros donos ou caçar ratos.

Ensinar a ser independente e a viver sem apego...não é esta a maior lição que devemos dar a quem amamos? Ensinar o desapego é a mais sábia lição de amor que se pode dar. Eu, que já perdi a minha mãe, percebo que foi isso que ela tentou fazer nas últimas semanas da sua vida: afastar-nos para nos preparar a viver sem ela, afastar-nos para também ela se preparar para se desapegar de quem amava. Amar é também ensinar a viver sem quem se ama. E se isto se aplica a pessoas, ainda mais se aplica a animais. Respeitar a natureza dos animais, e não fazer deles brinquedos, como algumas vezes se vê, é também uma generosa prova de afecto. 

Felizmente, ainda que só mais tarde o tenha percebido, a vida foi-me preparando para a ausência física da pessoa que mais amava (e amo). Tal como os gatos, sei estar só comigo mesma. Sei entreter-me comigo mesma, sei conviver com o silêncio, sei entregar-me aos livros, aos filmes, mas também aos abraços de quem amo. Aprender a solidão é a melhor forma de melhor nos entregarmos aos outros e a nós mesmos. Os gatos também gostam de ter os seus momentos solitários. Devíamos aprender mais a observá-los. Eles também ganham tempo a observar-nos. 




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