Portugal dos pequeninos





Paulo Ferreira criou um paraíso para os saudosistas. Mistério Juvenil é um site onde o passado infantil é rei. Um projecto que começou por ser uma homenagem a Enid Blyton tornou-se num espaço onde nos sentimos pequeninos. E cheios


O site Mistério Juvenil é uma espécie de Coelho Branco da história Alice no País das Maravilhas: está atrasado. E essa imagem de um coelho retardado agarra-nos a atenção e transforma-nos em curiosas alices. Seguimos o coelho e entramos na infância, na nossa, na de todos, principalmente na daqueles que estão algures entre os 30 e os 40 anos. “O Mistério Juvenil está dez anos atrasado”, solta Paulo Ferreira, 37 anos [agora 45], autor do projecto. “O Mistério Juvenil não é um site dos anos 80, o objectivo é ser de todas as infâncias. Daqui por dez anos, poderá fazer-se recolha sobre a infância de agora”, expressa.

Ao chegarmos a http://www.misteriojuvenil.com/, descobrimos que o saudosismo não é coisa de terceira idade. Na dobra da adolescência para a vida adulta, nascem saudosistas, ainda sem rugas, mas com as imagens da infância já desfocadas. O fórum do site é revelador do entusiasmo com que os adultos trocam impressões sobre jogos, brincadeiras tradicionais, livros de aventuras, séries televisivas, marcas e objectos de coleccionismo. Activamente, participam no fórum mais de 300 pessoas.  

Neste espaço, a memória é iluminada e voltamos a lembrar-nos das colecções de cromos, caricas, borrachas cheirosas ou folhas com desenhos fofinhos. Também voltamos a sentir os estalidos na língua que as Peta Zetas despertavam, ou a doçura de trincar os guarda-chuvas de chocolate da Regina, ou o incómodo nas mãos causado pelos Pega Monstro, ou ainda a excitação com que fazíamos cachecóis de lã, com o jogo Tricotar É Fácil.

Da infância, passada no bairro social do Cerco, no Porto, Paulo Ferreira guarda os sabores das batatas fritas Pala Pala, do Sumol, Fruta Real ou Laranjina C. Mas também do Toddy, Nesquik, Coqui e, claro está, do Fá, esse granizado que se podia beber ou, então, deixar congelar e comer como um gelado.

As brincadeiras de Paulo eram vividas na rua. “Foi uma infância feliz e vivida com jogos tradicionais”, recorda. No Verão, brincava ao jogo da carica. No Outono e Inverno, entretinha-se a jogar ao berlinde ou ao pião. A caçadinha, o jogo da macaca e as escondinhas eram outros dos divertimentos das tardes e noites das férias grandes. “A nossa infância puxava pela imaginação porque tentávamos conquistar as coisas. Hoje dá-se tudo até porque a situação económica agora é muito melhor”, sublinha Paulo Ferreira. Este repórter de imagem ainda se recorda da alegria que foi receber, em 1982, como presente de Natal, um walkie-talkie, objecto que tanto cobiçara, ao ver uma personagem do Sítio do Picapau Amarelo usar esse pequeno aparelho.

A habilidade do pai de Paulo, trabalhador da construção civil, fazia nascer brincadeiras artesanais: o arco e a gancheta. O autor do Mistério Juvenil não se cansava de empurrar, rua fora, o arco de metal ou de andar em carrinhos de rolamentos. A pausa nas tropelias com os amigos era feita na hora em que, na TV, davam as séries de eleição.

No Mistério Juvenil estão compilados os genéricos de séries de animação, que fizeram as delícias de Paulo, como Dartacão e os Três Moscãoteiros, Abelha Maia, Heidi, Misteriosas Cidades de Ouro, A Volta ao Mundo de Willy Fog, Fábulas da Floresta Verde, ou de ficção, como Bonanza, Aventuras de Bruce Lee, Crime Disse Ela, Macgyver, V-Batalha Final, ou ainda de programas juvenis, tais como Amigos do Gaspar e Árvore dos Patafúrdios. Quantos não estarão, a esta altura do texto, a trautear “Era uma vez os três/ os famosos moscãoteiros/ Do pequeno Dartacão/ são os companheiros/ Os melhores amigos são/ os três moscãoteiros/ quando em aventuras vão/ são sempre os primeiros”?

A infância, dos saudosistas dos anos 70 e 80 do século passado, era um território alongado. Era um tempo de vagares, de onde não se saia de passo apressado. Paulo abalou da meninice com passinho de formiga. Só deixou as brincadeiras infantis aos 16 anos. Hoje nota pressa em pular etapas: “Os meus sobrinhos desligaram dessas brincadeiras aos 13 anos”. Paulo observa que “os miúdos agora vão à TV e contam coisas de adultos e vestem como adultos”. Longe vão os tempos em que o criador do Mistério Juvenil via a Gala dos Pequenos Cantores da Figueira da Foz, festival que durou entre 1979 e 1998 e no qual “as crianças apareciam como crianças”, e não como adultos em ponto pequeno.

Paulo Ferreira, repórter de imagem, projeccionista de cinema e radioamador, tem, nos genes, o gosto pelo coleccionismo. Aliás, o Mistério Juvenil tem por base a colecção particular de material ligado à infância. “Gosto, sempre gostei de coleccionar; não sou coleccionador furtivo, daqueles que querem uma colecção porque vale muito dinheiro”. O avô era farrapeiro e sucateiro. E, “como a moda de reciclar, não é de agora”, a avó, nos idos anos 50, comprava papel, plástico, vidro e metal, para reciclagem. O pai de Paulo tinha por hábito ir à sucateira respigar objectos para coleccionar. Paulo seguiu o exemplo paterno e, desde criança, tornou-se recolector: “Era pequenino e o meu pai comprava o jornal e eu recortava a folha que trazia os filmes que estavam em cartaz”. Também frequentou feiras, em busca de algo que lhe fizesse brilhar os olhos.

O Mistério Juvenil foi um modo que encontrou, em 2000, de partilhar a paixão pelas obras de Enid Blyton, escritora que, em 1949, criou a personagem Noddy e que escreveu as colecções de livros Os Cinco, Clube dos Sete ou A Aventura. É fácil de perceber a origem do nome do site: “Queria falar de livros de mistério e aventura, por isso, o título ficou Mistério Juvenil”.

Paulo Ferreira começou por criar uma “página muito simples”. Após cinco anos, o site ganhou outra força, com uma abordagem mais ampla das memórias da infância. “Em 2005, de um momento para o outro, tinha por dia cento e tal mails de pessoas a agradecer, a dizer que choravam”. Spots publicitários, músicas do genérico de séries ou programas e ainda marcas comerciais da meninice passaram a estar acessíveis ao saudosismo dos que navegam na web. Surgiram também chicos espertos: “Chegaram a vender indevidamente CD com material retirado do site”. E Paulo Ferreira viu-se obrigado a colocar marcas de água nas gravações.

O Mistério Juvenil está a servir para unir toda uma geração no carrossel da infância. O fórum faz cruzar memórias e o edifício onde Paulo guarda as suas colecções torna-se, uma vez por ano, num clube de saudosistas: “Todos os anos, elementos do fórum juntam-se aqui, comigo, e comem coisas da infância e vêem filmes”. Apostamos que comem Bom-bokas, enquanto cantarolam “Scooby Doby doo where are you?/ we got some work to do now/ Scooby Doby Doo where are you?/ we need some help from you now/ Come on Scooby Doo/ I see you”.

(Há dias em que a nostalgia bate à porta. Por isso, recuperei este trabalho da minha autoria publicado na revista Nós Saudosistas (2009), do jornal i, com fotografias de Humberto Almendra)

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