D.R.
Fez ontem 150 anos que Marie Curie nasceu. A cientista
polaca, que ganhou dois prémios Nobel, descobriu, em conjunto com o marido,
Pierre Curie, o rádio e o polónio. Marie e Pierre estavam tão apaixonados
um pelo outro como pelo rádio. "Sentimos uma alegria especial ao observar
que os nossos produtos que continham rádio concentrado se tornavam espontaneamente
luminosos. (...) Por toda a parte podíamos ver silhuetas ligeiramente luminosas
e esse brilho, que parecia suspenso na penumbra, despertou em nós novas emoções
e encantamento", escreveu a investigadora. O casal estava tão enamorado
pelo rádio que, segundo a escritora Rosa Montero, na obra “A ridícula ideia de não voltar a ver-te”, até na cabeceira da cama tinha uma amostra deste metal,
como se este fosse o seu terço ou Deus privado.
Foi em 1913 que aqui, no meu concelho, Nelas, teve
início a exploração de rádio nas minas da Urgeiriça, sob impulso da
investigação científica de Marie Curie, em Paris. Naquela altura, acreditava-se
que o rádio tivesse propriedades terapêuticas, tanto que resíduos deste metal
eram vendidos como fertilizante e a água de uma fonte próxima das minas da
Urgeiriça era engarrafada por se julgar que teria propriedades terapêuticas.
Mas, na verdade, foi um pesado legado aquele que
resultou da exploração das minas de urânio na Urgeiriça. Após a extinção das
Empresa Nacional de Urânio (ENU) em 2004, o debate público veio alertar para os
riscos desencadeados pelo passivo ambiental acumulado ao longo de décadas,
sendo evidentes os riscos em termos de saúde pública, verificando-se um elevado
número de casos de doença oncológica em antigos trabalhadores da ENU. Ainda
hoje a Empresa de Desenvolvimento Mineiro, S.A. tem em curso a requalificação
do complexo mineiro da Urgeiriça, nomeadamente ao nível da descontaminação das
residências do antigo bairro mineiro, visto que muitas dessas casas têm níveis
assustadores de radioactividade.
É impressionante o facto de Marie Curie, a mãe do rádio, ignorar os perigos
do “filho”, chegando a passar rádio e polónio de um recipiente para outro
aspirando as substâncias com a boca por meio de uma pipeta. A paixão por este
metal levou-a quase à cegueira, literalmente. O rádio deixou-a quase cega e
teve de sujeitar-se a quatro operações às cataratas. As lesões nas mãos também
eram severas e a cientista acabou por morrer aos 67 anos, vítima de uma anemia
aplásica perniciosa, desencadeada pela exposição à radioactividade. Mas uma parte
de Marie já tinha morrido, com a perda do marido, que foi vítima de
atropelamento. Nessa altura, Pierre estava muito doente, com a
radioactividade a destruir-lhe o esqueleto. Por isso, se não morresse de
atropelamento, acabaria por morrer por causa dos efeitos do rádio.
O casal, que tinha em comum a entrega à ciência, casou-se pelo civil em Paris
em julho de 1895, um ano após os dois se terem conhecido. Juntos tiveram duas filhas, Irène e Ève, e descobriram primeiro o polónio e logo depois o rádio. A 19 de Abril de
1906, Marie recebeu a notícia da morte do marido, com quem estava há 11 anos.
Ele tinha 47 anos, ela 38. O curto diário de luto de Marie mostra uma mulher
absolutamente devastada com a morte do seu amor. Um sismo emocional, o peito estilhaçado. Aquela mulher, que aparece nas
fotos sempre com um ar triste, frio, no diário assumia ter “vontade de uivar
como um animal selvagem”. Por detrás do ar austero, Marie revelava ser um
icebergue de fogo, uma geada radioactiva.
“A tua cara mantém-se ainda doce e serena, continuas a ser tu, preso num
sonho de onde não podes sair. Os teus lábios, que eu costumava dizer que eram
deliciosos, estão pálidos, sem cor. A tua barbinha, grisalha; quase não se te
vê o cabelo porque a ferida começa justamente aí e poderia ver-se o osso
superior à direita da testa levantado. Oh, como te deve ter doído, como
sangraste, a tua roupa está encharcada em sangue! Que pancada sofreu a tua
pobre cabeça, que eu acariciava com frequência, segurando-a entre as mãos. E
mais uma vez te beijei as pálpebras que tu fechavas tantas vezes para que eu as
osculasse, oferecendo-me a cabeça com um movimento familiar que hoje recordo e
que verei esbater-se na minha memória; a lembrança é já confusa e incerta”,
escreveu a cientista a 30 de abril de 1906, 11 dias após a morte do marido,
sete anos antes da abertura das minas da Urgeiriça.
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